Emmanuel Rhoides (1836-1904) tinha nascido nas Cíclades, já iam quarenta e um anos, e não eram alheios à sua erudição os privilégios de um filho de embaixador que vivera em Génova, estudara literatura, história e filosofia em Berlim, levara a sua curiosidade arqueológica ao Egipto e aos restos da civilização dos faraós: tudo evidências de um bom tempo mais tarde enegrecido com o desastre financeiro dos Rhoides, o suicídio de um irmão importante como sustentáculo da família arruinada, a sua demissão do lugar de director da Biblioteca Nacional da Grécia (por causa de panfletos políticos que incomodavam o poder de Atenas), aquela esclerose dos tímpanos que nenhum médico conseguiu travar antes da surdez. Em 1904 a morte levou-o em pobreza e nostalgia;e cortava-o, sexagenário, da Grécia terrena que ele tanto tinha querido amar. A Papisa Joana («romance histórico», como lhe chamou) continua a fazê-lo pai do melhor texto ficcionado até hoje escrito sobre o que parece supremo embaraço para uma regra central da religião de Roma e causa de uma das agitações que entretiveram os meios literários do século XIX. Acrescentou-lhe dois títulos, nenhum deles ficção (Parerga em 1885 e Ídolos em 1893), hoje nas penumbras da literatura grega embora reconhecidos como brilho forte da sua erudição. A papisa [Joana], que no século XIX teria podido vir a exemplo para defesa dos direitos da mulher aos lugares «masculinos» que lhe estão vedados, só foi em Rhoides (ortodoxo ferido pelos cultos degradados e supersticiosos dos cristãos) um mergulho nas águas medievais onde as religiões do Cristo viveram os mais negros dias da sua história. Fê-lo com ironia e sedução verbal, arrastando até à luz uma das suas lendas ou realidades mais incómodas ù o supremo ataque contra a exclusividade masculina defendida pela interpretação autoritária dos textos sagrados. E levou a termo uma cruzada de ironização de bulas e relíquias, de baixas formas de fé que existiam e persistem nos permissivos tiques da religião popular, as que se nomeiam com o pejorativo da palavra «crendices». Talvez com espanto do autor, a recuperação de uma «verdade histórica oculta pelo Vaticano», e através dela o exercício de «uma análise crítica do vinho religioso que na Idade Média os povos do Ocidente bebiam nas bulas dos taberneiros de hábito», acertou em cheio num escândalo. [Aníbal Fernandes]