Filarete, um humanista do Renascimento formado no seio da vanguarda florentina de quatrocentos, andou sempre por caminhos trocados, presente no tempo errado de cada lugar que lhe coube percorrer. Requisitado por Papas e príncipes como notável artista, capaz de transportar para outros territórios os sinais da modernidade nascente, não foi feliz na actuação prática nem capaz de superar os obstáculos que a sorte dos dias ia colocando no seu caminho. Frustrado pela incompreensão dos que o deviam acompanhar nas acções de revolucionar as artes ao serviço dos novos senhores, mas seguro das razões que o levavam a admirar as teses de Brunelleschi e Alberti, registou com toda a convicção em vinte e quatro livros de arquitectura o manancial de saberes e experiências colhidos ao longo de uma vida, não sabemos se sofrida ou satisfeita. A partir do seu tratado, o nome Filarete ficou associado à ideia de Cidade Ideal. Os intelectuais do Renascimento tomaram das civilizações clássicas o mesmo entendimento definido pelos filósofos da Mileto pré-hipodâmica, em que o Homem, entidade primordial, é o observador capaz de entender o círculo do horizonte e dele extrair o conceito de centralidade, da ordem geométrica, da racionalização dos impulsos perante as evidências da natureza. Leram em Vitrúvio como deveriam ser organizadas as cidades. Correctamente dispostas no terreno numa estrutura radial adequada ao diagrama dos ventos, com as ruas a partir do centro e com limites bem marcados por muros dispostos em octógono regular. Discurso abstracto, não longe do pressuposto didáctico da imposição de regras gerais e universais, que favorecia a especulação teórica e, uma vez mais, o pensamento ordenado segundo princípios geométricos. Parece que a noção de cidade ideal, a que se consubstancia no espírito de um ser humano inteligente, capaz de absorver em síntese criativa a extrema complexidade da vida em colectivo, nunca conseguirá passar à prática enquanto cidade perfeita. Nem a atitude projectual séria, preparada para intervir em contexto real, se pode confundir com a utopia. Esta é irrealizável por definição, compõe um cenário de felicidade pretendida que se liberta de todos os constrangimentos para que o modelo social suportador da forma possa ser coerente e compreensível. É por isso que a utopia não pode sair do campo da obra literária, tal como a cidade ideal nunca conseguiu ultrapassar a escala do plano, sempre longe da realidade.